quinta-feira, 2 de abril de 2015

Mas o que Meléagro buscava, enfim?

O fim da busca Nenhum de nós poderá descer ao Hades para lhe fazer essa pergunta, mas podemos supor aquilo que Meléagro buscava era a aretê – importantíssima para os antigos gregos, essa palavra tem o significado de “excelência”.

Os heróis e as heroínas, como Atalanta, em geral tinham de passar pelo teste da batalha; mas a antiga aretê abrangia todas as habilidades e potenciais humanos. A destreza nas armas é um símbolo para tudo o que pode tornar a vida memorável, incluindo as façanhas da mente, as proezas da arte, a busca pelo conhecimento.

Nos mitos antigos, a essência do Universo é o conflito: viver é lutar – contra o destino, contra as circunstâncias inevitáveis da existência, contra a sociedade, contra a história. A face do rival é infinita, e a aretê é o que nos permite terminar o combate de cabeça erguida. Mesmo que acabemos nos encontrando no rio Letes.

Há violência e angústia nessa concepção do mundo, mas também algo de delicado e sutil. Buscar a excelência não significa ignorar nossos próprios limites – pelo contrário, reconhecer as fronteiras do humano e aprender a agir dentro delas é uma das formas mais profundas de aretê.

Por isso todos os heróis gregos têm seus momentos de filósofo. Em suas andanças pelas neblinas do Além, Meléagro certa vez topou com o velho conhecido, Hércules – ainda vivo, ele descera ao mundo dos mortos para cumprir um de seus Doze Trabalhos.

Ao reconhecer o fantasma do amigo, Hércules chorou pela primeira e única vez. 

Segundo Baquílides, essas foram suas palavras: “Para nós, mortais, o melhor talvez seja jamais ter visto a luz do sol; mas uma vez que nascemos, de nada adianta lamentar nosso destino. Façamos o melhor que pudermos, dentro daquilo que pode ser feito”. 

E até hoje o fantasma de Meléagro anda por lá, pensando nessas palavras de sabedoria hercúlea.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

A vida

Ainda assim, a última memória triste paira e, às vezes, deixa-se levar como neblina flutuante, interceptando a luz do sol e enregelando a lembrança de tempos mais felizes.

Houve alegrias grandes demais para ser descritas com palavras e dores sobre as quais não ousei alongar-me; e com isso em mente, digo: escale se quiser, mas lembre que coragem e força são nada sem prudência e que uma negligência momentânea pode destruir a felicidade de uma vida inteira.

Não faça nada às pressas; olhe bem para cada passo; e, desde o começo, pense que poderá ser o fim.

terça-feira, 1 de março de 2011

I love you is really a question

Eu te amo
na verdade
é uma pergunta.

Verdade! Diga
eu te amo
e aguarde...

Tudo faz sentido
se ele responde
'Eu te amo'

(e você vê sinceridade)

Eu te amo
na verdade
é uma indagação.

(e aí reside a perversidade)

Eu te amo
na verdade
é uma intimação.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A futilidade da vida e do esforço de viver

A floresta escura de abetos erguia-se carrancuda de ambos os lados do rio congelado. As árvores tinham sido despidas de sua cobertura branca de gelo por um vento recente e pareciam inclinar-se umas para as outras, negras e agourentas, na luz evanescente. Um vasto silêncio reinava sobre a terra.

A própria terra era uma desolação, sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. Havia um laivo de riso nela, mas de um riso mais terrível que qualquer tristeza - um riso que era tão sombrio quanto o sorriso da Esfinge, um riso tão frio quanto o gelo e compartilhando a severidade da infalibilidade.

Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Grandes espíritos

Os reis deixaram aqui suas coroas e cetros; os heróis, suas armas. Mas os grandes espíritos, cuja glória estava neles e não em coisas externas, levaram com eles sua grandeza.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Assuma a responsabilidade por sua vida

É possível resumir o que podemos aprender do drama mítico do nascimento do herói para o nosso processo de individuação: quem se lançar na viagem do herói deve ocupar-se inevitavelmente, e de maneira afetuosa, com a criança abandonada e humilhada dentro de si. Deve se defrontar com o medo, a aflição e a impotência da sua primeira infância, para que sua curiosidade, sua força de vontade, sua franqueza e alegria de viver possam despertar outra vez. Para isso, os vários métodos de auto-experimentação oferecem múltiplos auxílios. Existe, contudo, a enorme tentação de continuar fixado na postura da criança abandonada, incompreendida, e numa atitude repreensiva diante dos pais. Muitos repetem durante anos e décadas os sentimentos e queixas infantis eternamente iguais, sem que comecem a assumir a responsabilidade pela sua própria vida. É que para isso é necessário superar o estágio da criança abandonada e encontrar a criança "divina", aquela força vital que nos fez sobreviver até agora e que, apesar de todas as dificuldades, brada um grande "Sim!" à vida. Nós mesmos temos de assumir agora a paternidade diligente dessa criança divina.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Carta para Ana


I.

Tão estranho não ter a quem escrever, Ana. Todos os da casa se foram. Carlos casou-se; Vitória foi tentar a vida na cidade. Sobramos eu e a mãe, a casa toda atrás de nós. A mãe não pode ler, está cega e vive pedindo-me que lhe leia algo, que lhe conte alguma história. Estou sem histórias, Ana. Não consigo mais contar da morte do pai que inventei

(o canalha na verdade se foi)

aquele funeral fictício, eu chorava e a mãe também ao meu lado no meio do cemitério sem mais ninguém por perto

– Seu pai não era querido Joel?

– Era sim mãe o caso é que o enterro caiu em dia de semana fica difícil pro povo faltar o serviço

a mãe pedindo-me que lhe vestisse de preto todos os dias por causa do luto, eu sentindo raiva daquele desgraçado que nos deixou, deixou-me com minha mãe cega e com dois aluguéis atrasados da casa, estamos sem televisão pois cortaram a eletricidade, disse à mãe que o aparelho quebrou, disse que não precisamos de TV afinal posso contar-lhe histórias e temos o rádio de pilhas para ouvir, mas estou sem histórias

(já não escrevo, minha mão não presta a não ser para escrever a você cartas que nunca enviei, todas as minhas memórias que rasgo dois dias depois)

minha mãe perguntando-me como está a cidade, se o futuro já chegou por aqui, pedindo-me que a leve ao rio mas não há mais rio, secou como todos sabem, o rio em que eu e você tomávamos banho, está lembrada, Ana?, divertíamo-nos brincando de cabra-cega, mergulhávamos como um dia vimos na TV que transmitia as Olimpíadas, e você me prometia que quando crescêssemos iríamos juntos para a cidade, sobramos eu e a mãe, a casa toda atrás de nós, e não sei ainda para que cidade você foi. A mãe perguntando-me por você

– Joel que é feito da Ana?

– Morreu

informo-lhe, como se nunca o tivesse feito, e ela se choca a cada vez que dou essa mesma notícia, você morreu e enterrou-se só em alguma cidade que desconheço, a mãe vestida de preto olhando para o nada, a escuridão à sua frente, fazendo mais um cachecol de tricô sem serventia alguma na quentura desse sertão.

Não posso mais ouvir música, acabou-se a pilha do radinho e minha mãe canta um velho hino de sua igreja, como pode a velha ainda ter fé no meio desse calor sem mato, sem rádio, sem televisão, a mãe canta como se tivesse seus quinze anos, cantora de coral, disseram uma vez que a levariam para cantar na cidade grande, meu pai se apaixonou pela cantora e não a deixou sair do sertão, aquele canalha que agora nos abandonou, morreu, o enterro fictício, minha mãe de preto cantando na volta para casa, pedindo-me uma história, cantando que existe a esperança, que o céu tem rios que não secam, o São Francisco seco e ela querendo tomar banho, cantando e ensaiando com as mãos secas as notas no piano que também sabia tocar, mexendo os dedos um a um como quando faz tricô, e eu assistia com lágrimas nos olhos, Ana, como quando você se foi e não disse adeus, as mãos inchadas, fortes e fracas da minha mãe, estava vestida de preto e cantava enchendo os pulmões, levantando, rodando pela casa, esbarrando na TV que não funciona mais, a velha iluminava a casa e sorria, que no céu há rios que nunca secam, cantando e tocando piano, como pode ainda ter fé a desgraçada, Ana?

Eu inventando como foi que o pai morrera, dizendo que tomasse cuidado para não cair e ela rodopiava, minha mãe com quinze anos cantando no coral, dançando a valsa com meu pai

aquele

minha mãe que devia tomar dois remédios por dia mas não tenho o dinheiro, não tenho mais histórias nem luz, minha mãe dançava sozinha, sem marido, ela era luz e sorria no meio da casa sem flores, como quando éramos crianças e ela cantava para nós de perto, dizendo que não nos preocupássemos que a primavera já chegava, que a chuva já vinha, que o pai já conseguia um emprego, minha mãe comigo no colo rodopiando pela casa festiva, as lágrimas saindo-me dos olhos, não conseguia pará-la, eu desistindo de alertar-lhe a respeito dos objetos no seu caminho, girando e enfim sorrindo também, como no dia em que você me disse que éramos gigantes, que nunca morreríamos ou nos separaríamos, Ana, como quando você me disse que tão logo crescêssemos iríamos juntos para a cidade grande.


II.

Ontem fui até o rio, Ana, ou o que costumava ser o rio, e atirei-me à lama que substituiu há algum tempo a água que lá pousava. Saí todo sujo, os meninos correndo gritando

– Tia tem um maluco lá no rio

e eu não sei mais se sou louco ou normal, a mãe diz que sou o preferido, que só eu mesmo pra ficar ao lado dela cega, as pessoas chegando até nossa casa pra vê-la

– Dona Neusa está tudo bem com o Joel? Ontem ele ficou rodando deitado no rio parecia um maluco

minha mãe sentando

– Não mentira não pode ser o Joel

eu me aproximando dela, perguntando o que havia acontecido, explicando que esse povo é que é doido e fica inventando história pra perturbar a gente

– Está certo filho você pode ir à feira comprar dois quilos de batatas e alguns jilós?

comprei meio quilo e um jiló mas disse à mãe que fiz tudo como ela pedira, o dinheiro acabou mais uma vez, Ana, a Vitória ingrata nem pra aparecer aqui em Pão de Açúcar ou ao menos mandar um dinheirinho, já deve estar rica lá em São Paulo, o Carlos nem quero pensar, tomara que nunca consiga ter aquele filho, só de pensar no que ele fez com você, Ana, coisa de animal, nunca vou perdoá-lo mesmo que você volte aqui me pedindo de novo, dizendo que você consentiu, já disse que não sou homem de retirar minhas palavras

– Joel olha ontem eu e o Carlos

fui revoltado ao encontro do idiota que não entendeu nada quando recebeu um soco no meio do rosto e nunca mais lhe dirigi a palavra, nunca mais, nós dois na mesma casa se esbarrando, o Carlos tentando falar alguma coisa, e eu passava por ele mudo sem nem olhar nos olhos, você

– Joel olha ontem

sem pudor, sem vergonha, hoje eu penso como você pôde, Ana, depois de tudo aquilo, que nunca nos separaríamos, eu dormia pensando em você, no seu biquini amarelo, pensava em nós dois em Pão de Açúcar, nosso casamento na Igreja Batista seria bonito e teria flores por todo lado, as damas de honra poderiam ser as suas sobrinhas, o arroz, você entrando deslumbrante pela porta, o pessoal do coral cantando e minha mãe provavelmente não resistiria, eu dentro de você, nossos filhos, tudo isso se perdeu, Ana, se perdeu quando você

– Joel olha

se foi, não te vi mais, seus olhos me lembravam a cor do São Francisco, a palma da sua mão branca, sua pele mulata que dava até medo de abraçar. Hoje tenho uma mãe cega, uma TV que não funciona, um radinho sem pilhas, aluguéis atrasados e mais nada depois que você se foi, fugi naquele dia de chuva que todos esperavam menos eu, em dias assim o rio voltava a parecer com o que já fora

– Joel

não quis ouvir

– Jo

e hoje te escrevo porque preciso te ouvir. Pergunto-me se algum dia terei um destinatário, se terei seu endereço, Ana, e finalmente não rasgarei minhas cartas e minhas memórias dois dias depois.


III.

Ana, resolvi parar de rasgar minhas cartas. De agora em diante vou guardá-las no armário para o caso de um dia você voltar e poder, quem sabe, dar de cara com elas ao vir me visitar, dizendo que estava de volta a Pão de Açúcar, que não aguentava mais estar longe de mim, que aquilo tudo com o Carlos não havia sido nada, que suas sobrinhas seriam nossas damas de honra e espalhariam arroz por toda igreja, que você quis ligar e enviar cartas mas não conseguia de jeito algum lembrar meu número e meu endereço, que estava com saudades do São Francisco e não podia acreditar na lama em que o nosso rio havia se transformado.


IV.

Estou mergulhado nesse rio de memórias, Ana, nas quais me perco. E já não sei se nos beijamos ou se era apenas a minha vontade, já não lembro por que brigamos, por que soquei o Carlos, por que você partiu. Tudo que agora conto e recordo terá de fato acontecido?

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O homem e seus objetivos

Falando em termos absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtude, pois o dinheiro se interpõe entre um homem e seus objetivos, e os obtém para ele, e certamente não há grande virtude em fazê-lo.

O dinheiro abafa muitas questões que, de outro modo, este homem seria levado a responder, ao mesmo tempo em que a única nova questão que lhe propõe é a difícil, embora supérflua, questão de como saber gastá-lo.

Assim, seu fundamento moral lhe é retirado de sob os pés. As oportunidades de viver diminuem na proporção em que aumenta o que se chama de meios.