terça-feira, 5 de outubro de 2010

Carta para Ana


I.

Tão estranho não ter a quem escrever, Ana. Todos os da casa se foram. Carlos casou-se; Vitória foi tentar a vida na cidade. Sobramos eu e a mãe, a casa toda atrás de nós. A mãe não pode ler, está cega e vive pedindo-me que lhe leia algo, que lhe conte alguma história. Estou sem histórias, Ana. Não consigo mais contar da morte do pai que inventei

(o canalha na verdade se foi)

aquele funeral fictício, eu chorava e a mãe também ao meu lado no meio do cemitério sem mais ninguém por perto

– Seu pai não era querido Joel?

– Era sim mãe o caso é que o enterro caiu em dia de semana fica difícil pro povo faltar o serviço

a mãe pedindo-me que lhe vestisse de preto todos os dias por causa do luto, eu sentindo raiva daquele desgraçado que nos deixou, deixou-me com minha mãe cega e com dois aluguéis atrasados da casa, estamos sem televisão pois cortaram a eletricidade, disse à mãe que o aparelho quebrou, disse que não precisamos de TV afinal posso contar-lhe histórias e temos o rádio de pilhas para ouvir, mas estou sem histórias

(já não escrevo, minha mão não presta a não ser para escrever a você cartas que nunca enviei, todas as minhas memórias que rasgo dois dias depois)

minha mãe perguntando-me como está a cidade, se o futuro já chegou por aqui, pedindo-me que a leve ao rio mas não há mais rio, secou como todos sabem, o rio em que eu e você tomávamos banho, está lembrada, Ana?, divertíamo-nos brincando de cabra-cega, mergulhávamos como um dia vimos na TV que transmitia as Olimpíadas, e você me prometia que quando crescêssemos iríamos juntos para a cidade, sobramos eu e a mãe, a casa toda atrás de nós, e não sei ainda para que cidade você foi. A mãe perguntando-me por você

– Joel que é feito da Ana?

– Morreu

informo-lhe, como se nunca o tivesse feito, e ela se choca a cada vez que dou essa mesma notícia, você morreu e enterrou-se só em alguma cidade que desconheço, a mãe vestida de preto olhando para o nada, a escuridão à sua frente, fazendo mais um cachecol de tricô sem serventia alguma na quentura desse sertão.

Não posso mais ouvir música, acabou-se a pilha do radinho e minha mãe canta um velho hino de sua igreja, como pode a velha ainda ter fé no meio desse calor sem mato, sem rádio, sem televisão, a mãe canta como se tivesse seus quinze anos, cantora de coral, disseram uma vez que a levariam para cantar na cidade grande, meu pai se apaixonou pela cantora e não a deixou sair do sertão, aquele canalha que agora nos abandonou, morreu, o enterro fictício, minha mãe de preto cantando na volta para casa, pedindo-me uma história, cantando que existe a esperança, que o céu tem rios que não secam, o São Francisco seco e ela querendo tomar banho, cantando e ensaiando com as mãos secas as notas no piano que também sabia tocar, mexendo os dedos um a um como quando faz tricô, e eu assistia com lágrimas nos olhos, Ana, como quando você se foi e não disse adeus, as mãos inchadas, fortes e fracas da minha mãe, estava vestida de preto e cantava enchendo os pulmões, levantando, rodando pela casa, esbarrando na TV que não funciona mais, a velha iluminava a casa e sorria, que no céu há rios que nunca secam, cantando e tocando piano, como pode ainda ter fé a desgraçada, Ana?

Eu inventando como foi que o pai morrera, dizendo que tomasse cuidado para não cair e ela rodopiava, minha mãe com quinze anos cantando no coral, dançando a valsa com meu pai

aquele

minha mãe que devia tomar dois remédios por dia mas não tenho o dinheiro, não tenho mais histórias nem luz, minha mãe dançava sozinha, sem marido, ela era luz e sorria no meio da casa sem flores, como quando éramos crianças e ela cantava para nós de perto, dizendo que não nos preocupássemos que a primavera já chegava, que a chuva já vinha, que o pai já conseguia um emprego, minha mãe comigo no colo rodopiando pela casa festiva, as lágrimas saindo-me dos olhos, não conseguia pará-la, eu desistindo de alertar-lhe a respeito dos objetos no seu caminho, girando e enfim sorrindo também, como no dia em que você me disse que éramos gigantes, que nunca morreríamos ou nos separaríamos, Ana, como quando você me disse que tão logo crescêssemos iríamos juntos para a cidade grande.


II.

Ontem fui até o rio, Ana, ou o que costumava ser o rio, e atirei-me à lama que substituiu há algum tempo a água que lá pousava. Saí todo sujo, os meninos correndo gritando

– Tia tem um maluco lá no rio

e eu não sei mais se sou louco ou normal, a mãe diz que sou o preferido, que só eu mesmo pra ficar ao lado dela cega, as pessoas chegando até nossa casa pra vê-la

– Dona Neusa está tudo bem com o Joel? Ontem ele ficou rodando deitado no rio parecia um maluco

minha mãe sentando

– Não mentira não pode ser o Joel

eu me aproximando dela, perguntando o que havia acontecido, explicando que esse povo é que é doido e fica inventando história pra perturbar a gente

– Está certo filho você pode ir à feira comprar dois quilos de batatas e alguns jilós?

comprei meio quilo e um jiló mas disse à mãe que fiz tudo como ela pedira, o dinheiro acabou mais uma vez, Ana, a Vitória ingrata nem pra aparecer aqui em Pão de Açúcar ou ao menos mandar um dinheirinho, já deve estar rica lá em São Paulo, o Carlos nem quero pensar, tomara que nunca consiga ter aquele filho, só de pensar no que ele fez com você, Ana, coisa de animal, nunca vou perdoá-lo mesmo que você volte aqui me pedindo de novo, dizendo que você consentiu, já disse que não sou homem de retirar minhas palavras

– Joel olha ontem eu e o Carlos

fui revoltado ao encontro do idiota que não entendeu nada quando recebeu um soco no meio do rosto e nunca mais lhe dirigi a palavra, nunca mais, nós dois na mesma casa se esbarrando, o Carlos tentando falar alguma coisa, e eu passava por ele mudo sem nem olhar nos olhos, você

– Joel olha ontem

sem pudor, sem vergonha, hoje eu penso como você pôde, Ana, depois de tudo aquilo, que nunca nos separaríamos, eu dormia pensando em você, no seu biquini amarelo, pensava em nós dois em Pão de Açúcar, nosso casamento na Igreja Batista seria bonito e teria flores por todo lado, as damas de honra poderiam ser as suas sobrinhas, o arroz, você entrando deslumbrante pela porta, o pessoal do coral cantando e minha mãe provavelmente não resistiria, eu dentro de você, nossos filhos, tudo isso se perdeu, Ana, se perdeu quando você

– Joel olha

se foi, não te vi mais, seus olhos me lembravam a cor do São Francisco, a palma da sua mão branca, sua pele mulata que dava até medo de abraçar. Hoje tenho uma mãe cega, uma TV que não funciona, um radinho sem pilhas, aluguéis atrasados e mais nada depois que você se foi, fugi naquele dia de chuva que todos esperavam menos eu, em dias assim o rio voltava a parecer com o que já fora

– Joel

não quis ouvir

– Jo

e hoje te escrevo porque preciso te ouvir. Pergunto-me se algum dia terei um destinatário, se terei seu endereço, Ana, e finalmente não rasgarei minhas cartas e minhas memórias dois dias depois.


III.

Ana, resolvi parar de rasgar minhas cartas. De agora em diante vou guardá-las no armário para o caso de um dia você voltar e poder, quem sabe, dar de cara com elas ao vir me visitar, dizendo que estava de volta a Pão de Açúcar, que não aguentava mais estar longe de mim, que aquilo tudo com o Carlos não havia sido nada, que suas sobrinhas seriam nossas damas de honra e espalhariam arroz por toda igreja, que você quis ligar e enviar cartas mas não conseguia de jeito algum lembrar meu número e meu endereço, que estava com saudades do São Francisco e não podia acreditar na lama em que o nosso rio havia se transformado.


IV.

Estou mergulhado nesse rio de memórias, Ana, nas quais me perco. E já não sei se nos beijamos ou se era apenas a minha vontade, já não lembro por que brigamos, por que soquei o Carlos, por que você partiu. Tudo que agora conto e recordo terá de fato acontecido?